MARCO

Na festa do aniversário de 15 anos da Júlia algo muito chato aconteceu comigo. A garota me trancou no armário do quarto e mamãe nem se quer notou. Eu perguntei no outro dia o motivo de ela ter feito isso, ela disse que não queria que as amigas delas me vissem. Ela tinha vergonha de mim e também pensou que eu ia estragar a festa. O Eduardo sabia o que ela ia fazer e nem fez nada. Mamãe brigou com a Júlia e a esbofeteou. A Júlia partiu pra cima e queria bater na minha mãe. Eu joguei a panela de pressão nela e quebrei a cabeça dela. O pai dela ficou irado quando chegou à noite do serviço e tentou me agredir, mas mamãe não deixou. Ele vivia me dizendo que me odiava e que não sabia por que ele ainda estava me aturando na casa dele. Eu não sei ao menos o que o incomodava em mim. Talvez não aceitasse o fato de minha mãe ter tido um outro marido e muito menos um filho.
Depois daquele dia eu não me sentia mais bem em ficar ali. Eu pedia para mamãe pra irmos onde o papai. Ela procurou por ele, mas soube que tinha saído do estado como outra mulher e não tinha informações do lugar que ele foi. Nunca mais soubemos dele.
Quando completei nove anos mamãe ficou doente de tanto fumar. Ela teve que ficar internada por muitos meses no hospital. Uns quatro ou cinco. Eu sempre avisei pra ela largar de fumar, isso ia prejudicá-la, mas não me dava bola. Eu estudava de manhã e a tarde ia ficar com ela. Fazia meus exercícios do colégio no hospital mesmo. Eu tava me esforçando para passar de ano, afinal ainda tava na primeira série. Isso me deixava muitas vezes com vergonha dos colegas que eram mais novos que eu. Eu já era bem grande perto deles.
Numa daquelas tardes no hospital minha mãe chegou a me dizer que não agüentava mais de tanta dor que sentia. Eu a abraçava e parece que aquele abraço era um alívio para ela. Ela chorava muito e os médicos muitas vezes me tiravam de perto dela. Um dia o Eduardo me falou que ela ia morrer que os médicos já tinham feito de tudo. Isso me deixou muito debilitado e confuso. Foi quando eu fui à igreja e orei para que Deus a curasse e a livrasse da morte. Eu disse que não sobreviveria sem ter minha mãe por perto.
Em alguns dias mamãe se recuperou incrivelmente e os médicos se admiraram. Eu guardei isso comigo até hoje, não contei para eles que foi Deus que atendeu meu pedido.
Eu consegui passar para a segunda série. Mamãe me deu uma bicicleta de presente. Eduardo nem deu a mínima. Júlia me abraçou. Foi a única vez que eu cheguei perto de gostar dela. Mas depois daquele dia ela continuou a mesma chata de sempre.
Foram anos cheios de muita dor, mas parece que sempre tive alguém lá em cima olhando por mim. Mamãe parou de fumar, mas continuava bebendo demais. Os dois ainda brigavam muito. Eduardo mandou mamãe procurar um trabalho. Ela não gostou da idéia e disse que ele que tinha que sustentá-la. Ele bateu tanto nela, chamou ela de vagabunda e começou a bater na filha e em mim. Os vizinhos chamavam a polícia mas nunca adiantava. Sempre acontecia a mesma coisa. Mamãe dizia que ia embora, mas nunca fazia isso. Ela gostava mesmo dele.
Os anos se passavam muito rápido. Eu já estava na oitava série e nem percebi. Já não queria apanhar do Eduardo. Afinal eu já estava com quase dezesseis anos, e se ele me batesse eu iria agredi-lo. Mas eu não fazia pela mamãe, que o amava. E sabia também que ia me dar mal.
A Júlia estava igual a mamãe e o pai dela. Viciada. Ela chegava a me oferecer cigarros e bebidas. Mas eu nunca aceitei. Ela me chamava de covarde, de medroso. Ela me perseguia, queria que eu comprasse drogas para ela, da mão de um cara que estudava na minha turma.
Na sexta série conheci o Juan, um garoto rico e que tinha sido transferido da Escola Nacional para a minha escola. No primeiro dia de aula ele se sentou ao meu lado. Ele era super engraçado e sempre muito bem humorado. Ele tinha 11 anos quando o conheci. Seus pais tinham uma fábrica de brinquedos na cidade e em outros locais do país. O Juan sempre foi muito sincero e verdadeiro comigo. Nós ficamos muito amigos e sempre brincávamos na hora do intervalo.
Muitas vezes ele me convidou para ir a sua casa jogar vídeo game e tomar banho de piscina. Nunca tive um amigo como ele.
Sempre íamos ao cinema, ao parque. Ele sempre pagava para mim quando eu estava sem dinheiro. Sua sinceridade e humildade me cativavam e talvez seja por isso sua presença me fazia bem.
Uma tarde nós inventamos de andar de metrô pela cidade. A gente passou mais de uma hora no metrô e quando descemos estávamos na estação da cidade vizinha. A gente pegou o metrô errado. Queríamos apenas ter uma aventura na nossa cidade e acabamos viajando. Já estava de noite.
Os pais dele estavam muito preocupados, bem como minha mãe. A polícia foi avisada do nosso desaparecimento e fomos pegos por policiais poucas horas depois de desembarcarmos. O policial perguntou o que a gente estava aprontando. Ele nos levou ao distrito policial e ali esperamos pelos pais do Juan e por minha mãe.
Sabíamos que quando chegássemos em casa iríamos levar uma grande bronca. Mas foi muito divertido aquele dia.
Quando estava na oitava série Juan conversou com os pais deles para que eu pudesse trabalhar como aprendiz em sua fábrica de brinquedos. Os pais deles me empregaram no mês do meu aniversário, em junho, e eu ia ganhar muito bem para um garoto da minha idade. Eu ia embalar os brinquedos, durante o dia, e a noite eu poderia estudar.
Naquela época, Eduardo começou a sair toda noite e enganar minha mãe com outras mulheres. Eu brigava com ele para que não fizesse isso e se ele continuasse a enganar mamãe eu iria matá-lo. Não suportava a idéia de que minha mãe estivesse sendo traída por um cara que nem merecia o amor que ela devotava. Várias noites peguei minha mãe chorando por causa disso. Eu falei pra ela o deixar e irmos embora. Ela disse que não dava e que ali estava a razão dela viver. Eu disse tudo pra ela. Contei que Eduardo estava lhe traindo com várias mulheres do seu trabalho. Ela me bateu no rosto e pediu para eu nunca mais dizer uma coisa dessa.
Eu chorei por vários dias. Minha raiva por ela era tanta que nem mesmo tinha coragem de lhe dirigir a palavra. Juan me aconselhou a perdoá-la. Eu bem que tentei, mas toda vez que chegava perto dela sentia medo. Numa noite, eu me sentei ao seu lado e lhe disse que a amava. Ela me disse o mesmo e nos abraçamos. Ela pediu que eu entendesse sobre ela e o Eduardo. Eu falei tudo bem.
Na mesma semana, eu passava pela rua para ir ao trabalho e vi um anúncio de um apartamento que estava para alugar bem perto da fábrica. Era barato e dava para eu pagar. Parecia uma solução para o que eu vivia. Há muito tempo eu queria sair de casa e aquela era a oportunidade. Eu queria me sentir livre do Eduardo, da Júlia, da minha vida de perturbação. Eu queria respirar um pouco.
Conversei com mamãe e ela como já estava trabalhando, pôde assinar os contratos de aluguel. Ela entendeu a minha decisão e achava que eu ficaria bem melhor distante da realidade que vivia. Em novembro eu comecei a morar lá. Mamãe me deu uma geladeira, eu comprei a cama e o resto o Juan pegou de sua casa e me deu.
Minha vida mudou completamente a partir daquele dia. Eu tinha que fazer coisas que nunca tinha feito, foi uma verdadeira aventura. Não estava acostumado com a cozinha, mas todas as noites eu teria que preparar meu jantar. Algumas vezes dava tudo errado e era o jeito ir para escola sem comer nada. Lá eu conseguia lanchar alguma coisa.
Certa noite eu estava preparando um frango, que eu havia comprado já temperado e só no ponto de ir ao forno. Para mim estava maravilhoso, eu não precisava me preocupar com nada mais além do arroz. Eu fui assistir ao jornal e nem reparei o tempo passar. Eu senti de longe um cheirinho de fumaça. Era o frango assado, torrado. Ainda bem que não tinha nenhum convidado.

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Continua no próximo domingo

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